14 julho 2005

Luís Monteiro da Cunha

O Enviado

(…) Recordei muitas vezes o que me disseste, e tive medo de piorar ainda a minha sorte. Passei um mau período, até que compreendi que o medo não ajuda a sorte de ninguém.
Para fugir do medo comecei a contar histórias: a mim próprio, aos outros.
Contava, por exemplo, a história do menino infeliz, órfão e abandonado que um dia encontra uma benfeitora que o ama perdidamente, que é perdidamente generosa.
- E depois?
Perguntava quem o escutava.
- Depois viveram felizes para sempre.
- Depois a benfeitora adoeceu e o rapaz tratou-a com desvelo incomparável.
O jovem inventava vários finais para a história, justos e edificantes, mas os seus ouvintes maçavam-se. Percebeu que a reacção dos ouvintes era o sinal da verdade da história – da falta de verdade; não encontrava final satisfatório.
Contou então que o menino cresceu rico e descuidado. Tão descuidado que achava longínquo o perigo, longínqua a necessidade. Comprou um carro de corrida, desenfreadamente o guiava, e matou-se num desastre.
Chegou a contar esta história em verso, com acompanhamento musical. As pessoa ficavam então junto dele discutindo o final, indignando-se.
- O que queres provar?
Diziam.
- Que a felicidade não dura, que a riqueza é um mal? (…)


(…) Bem vistas as coisas, todos temos uma doença incurável: aproximamo-nos da morte todos os dias, e todos os dias temos de tentar prolongar um pouco mais o nosso trajecto.
O rapaz aprendeu a contar histórias. (…)
(…) É possível que sim: que tenha havido uma cura, e miraculosa. Não é todo o crescimento uma miraculosa cura, do não ser ao ser.
É neste mundo de onde vos falo que se situa a fonte dos milagres. Um mundo onde narradores se misturam, onde todos o espaços, mesmo os mais subjectivos, podem ser visitados, onde o tempo não tem sentido único.
Esta é a minha própria história. Como eu me tornei um contador de histórias, depois de uma infância triste e de uma juventude doentia, juntando-me a um velho sonho.

IN: Maria Isabel Barreno
O enviado
Ed. Caminho, 1991

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