12 julho 2005

Luís Monteiro da Cunha

Traído pela língua

Ainda no tempo colonial, havia na Boa Vista um pescador, homem já maduro, mas que tinha decidido que não haveria de morrer sem primeiro construir uma casa. Com esse objectivo, de há muitos anos atrás que estava ajuntando as pedras necessárias.

Sempre que conseguia ganhar um pouco mais que o necessário para o sustento da família, amealhava os trocados sobrantes por baixo do colchão e quando reunia o suficiente encomendava um camião de pedras que depois regava com água e cal como forma de desencorajar quem quer que quisesse considerá-las em estado de abandonadas.

Depois de alguns anos de poupança, já estava com uma razoável quantidade de material e a pensar que poderia começar a aforrar para a cal e os pedreiros, quando um dia o administrador do concelho se dirigiu a ele: precisava urgentemente de mandar levantar uma parede e o camião da Câmara não estava disponível para ir buscar as pedras. Poderia o homem dar-lhe as suas pedras de empréstimo durante uma semana no máximo? Ele lhe garantia que as mesma lhe seriam devolvidas com juros.

O homem coçou a cabeça, pensativo. Já tinha vivido o suficiente para saber que o Estado tem fama de bom pagador, só que normalmente o faz tarde e a más horas. Porém, numa ilha onde todos se conhecem pelos nomes é arriscado contrariar as autoridades, são elas que têm o pão e o queijo na mão, quando querem chatear um coitado não lhes custa inventar motivos. E lá acabou por anuir contrafeito, não sem lembrar ao sr. administrador que aquelas pedras eram a sua economia de muitos anos passados de riba d’água de mar apanhando vento e frieza, porque não queria morrer sem primeiro ter feito o seu buraco de casa. Mas o administrador tranquilizou-o, ele era homem de palavra, quando prometia cumpria à risca.

Porém, passou-se uma semana, passaram-se duas, três , seis meses, a parede do administrador já estava levantada e rebocada e nada de devolução das pedras.
Certo dia, o homem chegou mais cedo do mar e deslocou-se à Câmara, mas o administrador estava fora e ele apenas pôde deixar recado de que precisava das suas pedras.

Nada aconteceu, no entanto. E dias depois acabou por se encher de coragem, faltou ao trabalho e lá foi ao administrador.

O administrador recebeu-o rispidamente: o que é que você pensa, disse-lhe, eu sou um homem de palavra, quando prometo cumpro! E garantiu-lhe que logo no dia seguinte, sem falta, ele teria as suas pedras de volta.

Passaram-se mais quatro semanas e nada. O pescador voltou a faltar ao mar para ir ao administrador. Os seus prejuízos já eram muitos, disse, resoluto, porque além de não ter as suas pedras, ainda por cima já tinha perdido dois dias de trabalho para poder pedir o que era seu. E diante de alguma evasiva do administrador, acabou por ser peremptório: queria as suas pedras de volta!

O administrador não gostou daquela atitude de desafio e franziu os olhos: Mas você já vai começar a casa? Já, já não porque ainda não tinha o dinheiro completo, confessou. Então para que é que precisava das pedras? Precisava porque eram suas e queria-as onde as tinha posto, onde ia fazer a sua casa, lá é que estavam seguras. Mas você está a dizer que não confia em mim? Perguntou frio o administrador.

Apanhado de surpresa pela pergunta, o homem tartamudeou que naquele caso não se tratava de ter confiança ou não, tanto mais que ele apenas queria as suas pedras. Mas ante um persistente e interrogativo olhar do administrador, como que a intimá-lo a falar, ele continuou que não lhe tinha emprestado as pedras por uma questão de confiança, porque nesse aspecto até poderia dizer que não confiava nos próprios dentes porque de vez em quando lhe mordiam a língua...

Não foi preciso mais. Ali mesmo recebeu voz de prisão em flagrante delito de ofensa directa a sua excelência o sr. administrador do concelho por ter afirmado na sua barba-cara que não tinha qualquer confiança no mesmo, demonstrando dessa forma ostensiva falta de respeito e consideração devida às autoridades concelhias.

Foi logo conduzido à cadeia, onde passou algumas horas, e depois julgado em processo sumário pelo próprio administrador, agora como juiz do julgado municipal. Condenado a 15 dias de prisão, beneficiaria porém, da atenuante extraordinária da avançada idade e ausência de antecedentes criminais e teve por isso a sorte de acabar ficando com a pena suspensa, mas com a condição de não mais voltar a dirigir a palavra ao administrador. Pelo que nunca mais pôde exigir as suas pedras.

Morreu meses depois, sem ter construído a casa e se calhar a pensar que a verdade não leva a parte nenhuma.

Germano Almeida
Escritor cabo-verdiano


Bufagato

2 Comentários:

Às 13/7/05 08:15 , Anonymous Anónimo disse...

Bom dia.
Cedo começa o dia e temos que andar por aqui enquanto não aperta o calor.
Um abraço amil

 
Às 13/7/05 15:46 , Anonymous Anónimo disse...

E pelos vistos, ajudar o próximo também não leva a nada, pelo contrário, levam tudo. Principalmente se o próximo for um administrador... Boa semana!

 

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