11 agosto 2005

Luís Monteiro da Cunha

Quaresma

Certa manhã, o pai chamou por mim e pelo meu irmão e mandou-nos ir cortar o cabelo.Barbeiro
Deu-me uma nota de vinte escudos. Nunca vi tanto dinheiro nas minhas mãos e fiquei a admirar o Stº António, qual iluminura da catequese, contente pela confiança que o meu pai depositava em mim.
Fiquei todo ufano por um lado e temeroso por outro, pois tinha pavor da tesoura e da cadeira da barbearia.
- Bom dia Sr. Quaresma, o meu pai disse para virmos cortar o cabelo.
Aguardamos, enquanto o barbeiro, homem dos seus cinquenta anos, bigode á Tonico Bastos e rosto comprido e austero, terminava o único cliente.
Para ser sincero, tinha medo dele, com a sua bata branca, alto, infundia respeito. Pelo menos a mim que era criança.
Chegou a nossa vez e mandei o meu irmão na frente. Não queria, mas ameacei contar ao pai e lá se sentou.
Coitado. Sentado numa tábua atravessada nos braços da cadeira para aumentar a altura, bata branca apertada no pescoço e os cabelos cortados a fazerem comichão nos olhos, no nariz, nas orelhas, tinha de se coçar, não é?
Ouviu logo um sermão ríspido para se manter quieto.
Eu imaginava o que iria acontecer comigo, pois não suporto ainda hoje, qualquer tipo de objecto leve e flutuante no corpo sem me coçar de imediato.
Comecei a transpirar de nervosismo.
Entretanto, já a chorar o meu irmão saiu da cadeira, a cuspir cabelos. Agarrei-lhe na mão, paguei e saí porta fora.
- Tu não cortas?
- Hoje não, tenho de ir prá escola... enquanto corria rua fora.
O pior foi quando cheguei a casa com o cabelo por cortar. Tive de lá voltar mas acompanhado pelo meu pai.
Imaginem a minha situação... se já tinha pavor do barbeiro e da barbearia, com o meu pai a controlar a situação, então é que fiquei aterrorizado.
O Quaresma apercebeu-se e falou-me como nunca antes tinha falado assim. Calmo e sereno, paternal até. Explicou-me que os meninos têm de se manter quietos porque podem cortar-se na tesoura ou navalha e ele não nos queria cortar nenhuma orelha por engano. Se sentisse alguma irritação devia levantar a mão e esperar autorização para coçar.
Lá me sentei a contragosto na cadeira.
- Como já estás quase um homem, já não precisas da tábua, está bem assim? Vamos lá fazer-te um corte á homem!
Dá-me graxa, dá. O que eu queria era pirar-me dali o mais rápido possivel e acabar com o martírio.
- Está pronto, podes levantar-te!
Saltei como uma mola. Estava livre. Olhei de soslaio o espelho e fiquei triste, o corte de cabelo era de criança, tipo tigela! Pensei que me tinha feito um corte á homem, com risco ao lado e tudo... afinal foi só basófias, eu ainda era criança.
Cresci e continuei a cortar o cabelo no Quaresma.
Não era este o seu nome verdadeiro, era apelido.
Naquele tempo, católico que se prezasse não podia faltar á missa. Mas um dia, antes da quadra da quaresma, o barbeiro atrasou-se e chegou atrasado pelo que teve de ficar á porta da igreja que estava a abarrotar.
O padre no meio da homilia alertou os fiéis para se preparem para a quaresma dizendo alto e bom som:
- Como sabem, a quaresma está à porta... apontando-a involuntáriamente.
Todos os fiéis olharam de imediato para a porta... e quem viram?
O barbeiro. Este ao ver tanta gente a fixá-lo, ficou vermelho de vergonha, e no meio da gargalhada geral, desandou de imediato e nunca mais foi à missa da nossa freguesia.
Ele, que até tinha lugar cativo nos bancos da frente para a sua família, não aguentou tamanho vexame.
Mas do apelido nunca mais se livrou, ficou quaresma até morrer.

8 Comentários:

Às 12/8/05 14:05 , Blogger Luís Monteiro da Cunha disse...

Alex...
Sim, já li.
Não sabes, mas essa situação, ou análogas, acontecem-me pelo menos mensalmente, quando não mais vezes.
Alguns, consegue-se demover os intintos, outros, apenas desabafam como que a justificar a situação em que se encontram e apesar de lhes oferecermos todos os apoios possíveis e imaginários, constacto dias depois, nos jornais ou por pessoas conhecidas, que levou avante o seu desejo. Não ouviram, ou não quizeram ser ajudados.
Desabou-lhes o mundo na cabeça e os seus olhos aumentam 500 vezes o problema, parecendo-lhes sem solução.
Ainda vou ter de abordar este tema um dia destes e ser mais específico.
Desculpa-me ser assim tão vago.
Mas o suicídio, deixa-me frustrado e com uma raiva interna...

 
Às 13/8/05 12:04 , Anonymous Anónimo disse...

No antigo mercado da Póvoa, perto do local onde o meu avô tinha o seu lugar, havia também um barbeiro. Creio que nunca tive problemas em lá ir, mas lembro-me do raio dos comichões que o corte provocava e da tal tábua para ficar mais alto. Esta cena aconteceu mais tarde. Ia a um casamento e o meu pai era muito rígido no respeitante ao tamanho do cabelo. Certo é que não convinha nada aparecer no casamento com o cabelinho cortadinho, sabes como é, as garotas e tal... :). Certo é que quando ia cortar o cabelo disse para o barbeiro «Faça um corte que só você e eu saiba que ele foi cortado». Claro que aquilo só foi aparado pela rama ;). O pior foi quando o meu pai viu e se não fosse pelo facto de ser já tarde tinha a impressão que o corte seguinte era... total. :))) Ainda bem e assim no casamento eram resmas!... :))))

 
Às 13/8/05 12:15 , Anonymous Anónimo disse...

Olá!!

Li curiosa.. e reparei que nessa altura havia uma nota de 20 escudos.. não apanhei essa altura.

Quando era miúda, a minha mãe também tinha a mania de querer que cortasse o cabelo á menina, franja curta e cabelo curto até á altura da boca... e como eu detestava!!!!

 
Às 13/8/05 13:33 , Blogger Luís Monteiro da Cunha disse...

Alex...
Posta sempre o que quizeres e sobre qualquer tema.
O facto de me afectar, com alguns, apenas afecta superficialmente, pois dados os anos que já passei a ser confrontado com situações dessas ou ainda piores, desculpem por dizer isto, mas fui obrigado a desenvolver uma... capa, distanciamento, alheamento, em suma tive de me proteger, tentando não ser afectado por situações que fogem ao meu controle, embora fique sempre nas minhas memórias, não é?
Bom fim de semana.
Bjinhos pra B e pra ti...
Bufagato

 
Às 13/8/05 13:37 , Blogger Luís Monteiro da Cunha disse...

Márius...
A verdade é que o cabelo, é um acessório que adorna e completa a apresentação de qualquer pessoa.
Tou a ver que não faltaram namoradas após o casamento... lol
Bom fim de semana.
Abraço

 
Às 13/8/05 13:42 , Blogger Luís Monteiro da Cunha disse...

Mafalda...
Era o corte da moda, estilo Sissi Spacek ou Lisa Minelli. Até que não era feio, mas nem todos os rostos "cabiam" nesse tipo de corte. Quem tem rosto ligeiramente comprido fica melhor com o cabelo pelos ombros ou até meio das costas.
Só apanhaste moedas de vinte escudos, a vida foi encarecendo e o dinheiro desvalorizando.
Bom fim de semana.
Bjinho.

 
Às 13/8/05 16:50 , Blogger S disse...

Bufagato,
No bairro onde nasci e cresci havia mesmo um barbeiro chamado Quaresma. Apesar de em pequena aminha mãe sempre me obrigar a cortar o cabelo "à rapaz", nunca o cortei lá.
Já o meu irmão... esse não se safou!
Mas aquele Quaresma era simpático. Ele e a mulher são (ou eram, infelizmente nunca mais os vi) surdos-mudos, mas de uma simpatia para com os clientes que cativava qualquer um, e nem a sua deficiência os impedia de nos perceberem e de se fazerem entander perfeitamente.
Claro, já o meu mano (na altura com cerca de 5/6 anos),não achava o mesmo...

 
Às 13/8/05 17:48 , Blogger Luís Monteiro da Cunha disse...

Sofes...
Querida Sofia, este quaresma que eu conheci, foi noutros tempos em que os mundanos (que eramos nós) apenas tinhamos relações comerciais com as pessoas da classe média-alta (o Quaresma) e que tinham negócios ou estabelecimentos comerciais.
O Quaresma não era malcriado, apenas mantinha a distância entre classes e possivelmente por nunca ter tido filhos, não tinha muita paciência com os clientes infantis.
Fica bem, volta sempre.

 

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