Certa manhã, o pai chamou por mim e pelo meu irmão e mandou-nos ir cortar o cabelo.
Deu-me uma nota de vinte escudos. Nunca vi tanto dinheiro nas minhas mãos e fiquei a admirar o Stº António, qual iluminura da catequese, contente pela confiança que o meu pai depositava em mim.
Fiquei todo ufano por um lado e temeroso por outro, pois tinha pavor da tesoura e da cadeira da barbearia.
- Bom dia Sr. Quaresma, o meu pai disse para virmos cortar o cabelo.
Aguardamos, enquanto o barbeiro, homem dos seus cinquenta anos, bigode á Tonico Bastos e rosto comprido e austero, terminava o único cliente.
Para ser sincero, tinha medo dele, com a sua bata branca, alto, infundia respeito. Pelo menos a mim que era criança.
Chegou a nossa vez e mandei o meu irmão na frente. Não queria, mas ameacei contar ao pai e lá se sentou.
Coitado. Sentado numa tábua atravessada nos braços da cadeira para aumentar a altura, bata branca apertada no pescoço e os cabelos cortados a fazerem comichão nos olhos, no nariz, nas orelhas, tinha de se coçar, não é?
Ouviu logo um sermão ríspido para se manter quieto.
Eu imaginava o que iria acontecer comigo, pois não suporto ainda hoje, qualquer tipo de objecto leve e flutuante no corpo sem me coçar de imediato.
Comecei a transpirar de nervosismo.
Entretanto, já a chorar o meu irmão saiu da cadeira, a cuspir cabelos. Agarrei-lhe na mão, paguei e saí porta fora.
- Tu não cortas?
- Hoje não, tenho de ir prá escola... enquanto corria rua fora.
O pior foi quando cheguei a casa com o cabelo por cortar. Tive de lá voltar mas acompanhado pelo meu pai.
Imaginem a minha situação... se já tinha pavor do barbeiro e da barbearia, com o meu pai a controlar a situação, então é que fiquei aterrorizado.
O Quaresma apercebeu-se e falou-me como nunca antes tinha falado assim. Calmo e sereno, paternal até. Explicou-me que os meninos têm de se manter quietos porque podem cortar-se na tesoura ou navalha e ele não nos queria cortar nenhuma orelha por engano.
Se sentisse alguma irritação devia levantar a mão e esperar autorização para coçar.
Lá me sentei a contragosto na cadeira.
- Como já estás quase um homem, já não precisas da tábua, está bem assim? Vamos lá fazer-te um corte á homem!
Dá-me graxa, dá. O que eu queria era pirar-me dali o mais rápido possivel e acabar com o martírio.
- Está pronto, podes levantar-te!
Saltei como uma mola. Estava livre. Olhei de soslaio o espelho e fiquei triste, o corte de cabelo era de criança, tipo tigela! Pensei que me tinha feito um corte á homem, com risco ao lado e tudo... afinal foi só basófias, eu ainda era criança.
Cresci e continuei a cortar o cabelo no Quaresma.
Não era este o seu nome verdadeiro, era apelido.
Naquele tempo, católico que se prezasse não podia faltar á missa. Mas um dia, antes da quadra da quaresma, o barbeiro atrasou-se e chegou atrasado pelo que teve de ficar á porta da igreja que estava a abarrotar.
O padre no meio da homilia alertou os fiéis para se preparem para a quaresma dizendo alto e bom som:
- Como sabem, a quaresma está à porta... apontando-a involuntáriamente.
Todos os fiéis olharam de imediato para a porta... e quem viram?
O barbeiro. Este ao ver tanta gente a fixá-lo, ficou vermelho de vergonha, e no meio da gargalhada geral, desandou de imediato e nunca mais foi à missa da nossa freguesia.
Ele, que até tinha lugar cativo nos bancos da frente para a sua família, não aguentou tamanho vexame.
Mas do apelido nunca mais se livrou, ficou quaresma até morrer.